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sábado, 25 de setembro de 2010

A NOVA CLASSE DE CIRURGIÕES




Vou ao barbeiro duas vezes à semana. Ele é um tipo distinto, asseado. É italiano, calvo, magro, usa o bigode raspado à americana e não exala nunca o famoso hálito de alho que foi causa de grande aborrecimento para Thackeray ( novelista inglês ), o qual afirmou, mesmo, ser tal coisa um dos apanágios dessa honesta gente. Além disso o seu elegante casaco de alpaca está sempre delicadamente perfumado.

É bem hábil no ofício,e, se me submeto com paciência às rápidas evoluções depilatórias de uma aguçada navalha – aço Sheffield puro -, faço – o, contudo, um pouco desconfiado. Respiro tranqüilo, ao findar – se cada operação...

Mas o bom do homem possui um defeito, comum a muitos barbeiros: é loquaz. Fala muito, exageradamente, com todos os fregueses sobre todos os assuntos, enxertando, com freqüência, termos exóticos, alemães, ingleses, franceses, e até esperanto, nas suas prolixas orações que se tornam, afinal, verdadeiras saladas de palavras, intencionalmente confusas...capazes de fazer ao V. d’O Paiz ( periódico do último quartel do século XIX ) ralar – se de inveja se as ouvisse...

A princípio eu respondia:

- Foi mau!...

A operação era logo suspensa. O meu fígaro interrompia – a para melhor ouvir e melhor poder objetar. Ah! Ele sempre objetava! Às vezes risonho, com ares superiores; quase sempre, porém, de sobrolho contraído ele aproximava do meu assustado nariz o afiado gume, ameaçador e firme. Essas emoções me enervam. Resolvi, então, calar – me. Ainda algumas vezes esgotou ele a sua facindia [ sic ], mas percebendo que me desagradava, foi diminuindo, até cessar por completo, os seus discursos. Pude, pois, durante certo tempo, gozar do seu mutismo ao barbear...prazer, na realidade calmo e delicioso!
Em princípios do ano findo fui obrigado a retirar – me do Rio para terras longínquas e selvagens. Depois de muito viajar fiz alto em um arraial, o Santo Antônio dos Silveira do Pomba, lugarejo perdido nos confins de Minas. Só aí foi que senti a falta do meu italiano! O barbeiro do local era feroz, e mais feroz ainda a navalha dele! Que navalha, santo Deus! Tirava – me cada laca de pele que me fazia estremecer. O homem era dos tais que tiram pele e deixam cabelo!...Mas ai! que podia eu fazer contra? Se eu o censurasse tenho certeza de que ele me mataria!...

Assim torturado passei lá ano e meio, quase. Até que, em meados de junho, em noite úmida e escura, desço na Central... cheio de saudades e cheio de vontade de liquidar a espessa barba que deixara crescer havia duas semanas...mudara – se o meu amigo. Abandonara o andar térreo à rua Ouvidor e fora instalar – se em soberbo prédio à avenida Central...Só ele ocupava dois pavimentos! Confesso que hesitei...Assim, porém, que vislumbrei o meu falador amigo, desocupado, animei – me e atravessei o luxuoso salão iluminado à eletricidade com ventiladores a girar etc... e sob os olhares altamente analisadores de alguns elegantes encostados às ombreiras, em palestra...Custou – lhe reconhecer- me!... O meu grande estado hirsuto fê – lo estranhar – me. Depois indagou das minhas viagens, das causas delas, do seu resultado etc...

Que linguagem diferente, a dele!...A frase era polida, cuidada, bem construída, isenta dos antigos, anglicismo, galicismo etc... A atitude, os gestos dele eram bem outros! Muito parecidos com os de um segundo secretário!... Por sobre isso a maravilhosa instalação a me intrigar! Que melhoramentos! Que rios de dinheiro teria custado!...Indaguei, medroso, do motivo de todo aquele aparato de luz e progresso...

- Eu lhe explico senhor Anacleto. A causa disso é a reforma da instrução.
- Que reforma?
- Pois não sabe? Há outra reforma da instrução. Brevemente será publicada com todas as minúcias. Nem se compara às outras...Verá! Olhe...sempre a nós, barbeiros, feriu – nos esse tratamento pejorativo...


BARRETO, Lima. Origem: Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional. Coleção Lima Barreto ( conto incompleto )

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